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terça-feira, 6 de julho de 2010

RUBEM ALVES




Rubem Alves (Boa Esperança, 15 de setembro de 1933) é um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.

Aqui ele aborda um tema polêmico e eu gostaria que vc lesse e também desse a sua opinião a respeito.


GANHEI CORAGEM

*Rubem Alves


“Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente
tem coragem para aquilo que ele realmente conhece",
observou Nietzsche.
É o meu caso.
Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo.
Por medo.
Alberto Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe
acerca da hora em que a coragem chega:
"Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos".
Tardiamente.
Na velhice.
Como estou velho, ganhei coragem.

Vou dizer aquilo sobre o que me calei:
"O povo unido jamais será vencido", é disso que eu tenho medo.

Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus
como fundamento da ordem política.
Mas Deus foi exilado e o "povo" tomou o seu lugar:

a democracia é o governo do povo.
Não sei se foi bom negócio;
o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável,
é de uma imensa mediocridade.
Basta ver os programas de TV que o povo prefere.

A Teologia da Libertação sacralizou o povo
como instrumento de libertação histórica.
Nada mais distante dos textos bíblicos.
Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas.
Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha
para que o povo, na planície,
se entregasse à adoração de um bezerro de ouro.
Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso
que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos.

E a história do profeta Oséias, homem apaixonado!
Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava!
Mas ela tinha outras idéias.
Amava a prostituição.
Pulava de amante e amante enquanto o amor de Oséias
pulava de perdão a perdão.
Até que ela o abandonou.
Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário
pelo mercado de escravos.
E o que foi que viu?
Viu a sua amada sendo vendida como escrava.
Oséias não teve dúvidas.
Comprou-a e disse:
"Agora você será minha para sempre.".
Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa
numa parábola do amor de Deus.

Deus era o amante apaixonado.
O povo era a prostituta.
Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável.
O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros,
porque os falsos profetas lhe contavam mentiras.
As mentiras são doces;
a verdade é amarga.

Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola
com pão e circo.
No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos
sendo devorados pelos leões.
E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos!
As coisas mudaram.
Os cristãos, de comida para os leões,
se transformaram em donos do circo.

O circo cristão era diferente:
judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas.
As praças ficavam apinhadas com o povo em festa,
se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos.
Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro
“O Homem Moral e a Sociedade Imoral"
observa que os indivíduos, isolados, têm consciência.
São seres morais.
Sentem-se "responsáveis" por aquilo que fazem.
Mas quando passam a pertencer a um grupo,
a razão é silenciada pelas emoções coletivas.

Indivíduos que, isoladamente,
são incapazes de fazer mal a uma borboleta,
se incorporados a um grupo tornam-se capazes
dos atos mais cruéis.
Participam de linchamentos,
são capazes de pôr fogo num índio adormecido
e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival.
Indivíduos são seres morais.
Mas o povo não é moral.
O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.

Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional,
segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade.
É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia.

Mas uma das características do povo
é a facilidade com que ele é enganado.
O povo é movido pelo poder das imagens
e não pelo poder da razão.
Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens.
Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista
que produz as imagens mais sedutoras.
O povo não pensa.
Somente os indivíduos pensam.
Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam
a ser assimilados à coletividade.
Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham.

Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo.
Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung,
o povo queimava violinos em nome da verdade proletária.
Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar.

O nazismo era um movimento popular.
O povo alemão amava o Führer.

O povo, unido, jamais será vencido!

Tenho vários gostos que não são populares.
Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos.
Mas, que posso fazer?
Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche,
de Saramago, de silêncio;
não gosto de churrasco, não gosto de rock,
não gosto de música sertaneja,
não gosto de futebol.
Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo,
eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos
e a engolir sapos e a brincar de "boca-de-forno",
à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito.
Mas, para que esse acontecimento raro aconteça,
é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute:
"Caminhando e cantando e seguindo a canção.",
Isso é tarefa para os artistas e educadores.
O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.

*Rubem Alves - Colunista da Folha de S. Paulo

Fonte:
Revista zaP

Um comentário:

  1. Ligia,
    Rubem Alves ao final sintetiza as minhas percepções: - O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.
    O povo humanizado, solidário, apontando para a estrela que José Marti lançou... É a esperança do poeta Maiakovski, do escritor americano Joseph North, do dramaturgo brasileiro Augusto Boal...
    Esperança que às vezes custa a se concretizar, que insiste em ficar no fundo da caixa de pandora.
    Por isso mergulhamos na caixa de pandora, em busca da esperança...

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